

Flor Fantasma (2021)
Excerto da conversa com Susana Ventura, editada na edição online da revista Contemporânea[1], a propósito da exposição “Flor Fantasma”, que teve lugar no CAV – Coimbra, entre Dezembro de 2021 e Março de 2022.
Susana Ventura: Ao deparar-me com Flor Fantasma (tríptico), lembrei-me de um verso de Fernando Pessoa de que gosto muito: “Pálidas sombras, as rosas”.
“Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar…
Vêm, aéreas, dançar
Com perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos…
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos…
Passam e agitam a brisa…
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora…
Passam nos ritmos da sombra…
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene…
E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio…
Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar…”[2]
Há uma inversão na imagem. Os seres flutuantes, que usualmente nos surgem das sombras das flores como aquelas dos cardos, são feitos de luz brilhante e criam, entre si, uma dança sagrada. Flores ou algas ou torções do nosso corpo, quando libertamos os gestos e os transformamos em dança. Recupero uma ideia antiga que tenho da vossa obra e que, surge, agora, nos desenhos das duas instalações de Flor Fantasma: a criação de um desenho em devir. Um desenho que nasce dessa indiscernibilidade entre flor e corpo, entre corpo de sombra e imagem de luz, entre movimento e gesto, entre permanência e volatilidade… que cria, em nós, o desejo de ser flor, ser alga e ser dança. Há uma sensualidade e uma fluidez nos desenhos que facilitam esta transformação, esta passagem entre todos estes estados luminescentes. Na instalação de dois diapositivos sobre sete painéis de seda tingida manualmente, esta passagem torna-se, ainda, mais expressiva na fusão dos dois desenhos e as diferentes gradações de intensidade, criando uma latência, um pulsar, entre uma flor-rosto-grito e um caule-espada.
Caló e Queimadela: Interessa-nos muito pensar a imagem-luz e a cor em translucência. Estes desenhos vêm desse desejo de vermos projectados seres-luminescentes, formas vegetais levitantes, espíritos fluidos e orgânicos. Depois de realizarmos a estrutura de Corpo radial, composta por painéis de madeira e seda, ficámos muito entusiasmados e com vontade de continuarmos a trabalhar com estes meios e foi óptimo termos o apoio do CAV e da equipa do Jorge Simões na construção destas novas peças. O tipo de seda que usamos é um material muito flexível e que nos agrada muito em termos visuais e tácteis, pela possibilidade de podermos tingir, pintar, esticar e pelas sobreposições que se criam no espaço. A velatura é um gosto que ainda vem do interesse pela pintura e que parece dar corpo a uma sensação de prazer.
Susana Ventura: Identifico, ao mesmo tempo, uma procura pelo carácter primordial e originário da fabricação de imagens-movimento e imagens-tempo, que remonta às lanternas mágicas, em que as imagens eram projectadas sobre panos, criando essa imagem dupla reverberante entre sombra e luz, e ainda a alguns brinquedos ópticos, como o zootrópio ou o taumatrópio, em que as imagens utilizadas, ao contrário do que acontecia no cinematógrafo, eram pinturas ou ilustrações feitas à mão e apresentadas em sequência.
Permanecer entre as imagens é hipnótico. Existe uma imagem-movimento que surge entre os passos e entrego-me ao prazer de ensaiar diferentes medidas de tempo entre imagens/painéis. Perfaço uma sequência. Dou a volta e perfaço outra diferente. Provocar a imagem-movimento e a imagem-tempo para as fazer ressoar uma na outra na criação dessa outra imagem pairante, que sobrevoa o desenho e surge entre a retina e o nervo óptico do meu olho.


