
Fotos © Bruno Lopes
Sun Fold
NO·NO Gallery, Lisbon (2022)
I
A poem was born within me.
I wanted to silence it, but the images created by Mariana and Francisco clung to my body and I had no way of letting go of them, other than metamorphosing them into words. Being a passenger and a vehicle for something that we take into ourselves, into our body, are pre-human characteristics specific to birds and vegetable matter. Plant seeds, spores and pollen travel with the wind and with certain animals, such as butterflies and bees, germinating in places far from their origin and sometimes creating, in these free associations, new species. Philosopher Michael Marder (whose voice we hear in the artists’ film Palomacia) associates the idea of passage and of a body-carrier (or body-which-receives) to the principle of the genesis of life, which he explains by using the concept of fold and the example of the plants. These welcome, generate and disseminate very different forms of life, contributing to the creation of inter-species communities, which become possible precisely due to the continuous movements carried out by the folds, which fold and unfold, allowing passage and transportation of certain properties from one side to the other, from one being to another being which is born of this junction.
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[PT]
Dobra Sol
NO·NO Gallery, Lisboa (2022)
I
Um poema nasceu em mim.
Quis silenciá-lo, contudo as imagens criadas pela Mariana e pelo Francisco agarraram-se ao meu corpo e não tive como me soltar delas, senão metamorfoseá-las em palavras. Ser-se passageiro e veículo de algo, que tomamos em nós, no nosso corpo, são características pré-humanas próprias às aves e às matérias vegetais. As sementes de plantas, os esporos e o pólen viajam com o vento e com certos animais, como borboletas e abelhas, germinando em lugares distantes daquele da sua origem e, por vezes, criando, nessas associações livres, novas espécies. O filósofo Michael Marder (cuja voz ouvimos no filme Palomacia, dos artistas) associa a ideia de passagem e de corpo-transportador (ou corpo-que-acolhe) ao princípio da génese da vida, que explica recorrendo ao conceito de dobra e ao exemplo das plantas. Estas acolhem, geram e disseminam formas de vida muito distintas, contribuindo para a criação de comunidades inter-espécies, as quais se tornam possíveis, precisamente, devido aos movimentos contínuos efectuados pelas dobras, que se dobram e desdobram, permitindo a passagem e o transporte de certas propriedades de um lado para o outro, de um ser para outro ser, que nasce dessa junção.

A dobra é o princípio da compossibilidade, como pensava Leibniz. Este princípio estende-se a qualquer expressão de vivência pré-humana ou humana, pois a vida efectua, apenas, ilusoriamente, uma linha recta, com origem no nascimento e o seu fim na morte. Pelo contrário, somos testemunhas vivas que a vida tece em nós dobras sucessivas. O tempo é, ele próprio, uma dobra (contrariando, também, a ilusão da linha traçada por Chronos), como podemos constar na memória (a actualização de uma memória pura – relembrando Bergson – efectua uma dobra em que passado e presente são simultâneos). A compossibilidade pode ser traduzida pela ambivalência da heterogeneidade, em si criadora de formas de vida díspares. As obras dos artistas fizeram nascer em mim um poema, das imagens floresceram palavras no corpo que as transporta, ecoando, uma outra vez e outra e outra, em quem vê as obras e em quem lê as palavras. A arte é, também, uma forma de acolhimento (“um acolhimento que não é uma retenção”, relembrando ainda Marder), que será característica mais de umas obras do que de outras. Aquelas que acolhem serão talvez as mesmas que efectuam, elas próprias, dobras sucessivas.
The fold always exposes one plane while hiding the other which, when folded, can be unfolded into a new plane, different from the first, successively. What is revealed in the unfolding no longer refers to any original unity, but to another, sometimes distant: the beginning of the universe or of life. The petals of flowers, the leaves of plants bend in the darkness and open, unfold, to welcome light, heat and water. The sun unfolds onto flowers, it unfolds into us, it bends the entire earth’s surface and it bends the moon. It bends the light that unfolds into shadows. Shadows unfold into strange, wondrous beings. Ethereal, transitory, like ourselves, folds of a poem.
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[PT]
A dobra é o princípio da compossibilidade, como pensava Leibniz. Este princípio estende-se a qualquer expressão de vivência pré-humana ou humana, pois a vida efectua, apenas, ilusoriamente, uma linha recta, com origem no nascimento e o seu fim na morte. Pelo contrário, somos testemunhas vivas que a vida tece em nós dobras sucessivas. O tempo é, ele próprio, uma dobra (contrariando, também, a ilusão da linha traçada por Chronos), como podemos constar na memória (a actualização de uma memória pura – relembrando Bergson – efectua uma dobra em que passado e presente são simultâneos). A compossibilidade pode ser traduzida pela ambivalência da heterogeneidade, em si criadora de formas de vida díspares. As obras dos artistas fizeram nascer em mim um poema, das imagens floresceram palavras no corpo que as transporta, ecoando, uma outra vez e outra e outra, em quem vê as obras e em quem lê as palavras. A arte é, também, uma forma de acolhimento (“um acolhimento que não é uma retenção”, relembrando ainda Marder), que será característica mais de umas obras do que de outras. Aquelas que acolhem serão talvez as mesmas que efectuam, elas próprias, dobras sucessivas.
A dobra expõe sempre um plano, enquanto oculta o outro, que de dobrado pode ser desdobrado num novo plano, distinto do primeiro, sucessivamente. O que é revelado no desdobramento já não remete para uma qualquer unidade originária, mas para uma outra, por vezes, distante: o início do universo ou da vida. As pétalas das flores, as folhas das plantas dobram-se na escuridão e abrem-se, desdobram-se, para acolher a luz, o calor e a água. O sol desdobra-se nas flores, desdobra-se em nós, dobra a superfície terrestre inteira e dobra a lua. Dobra a luz que se desdobra em sombras. As sombras desdobram-se em estranhos maravilhosos seres. Etéreos, passageiros, como nós, dobras de um poema.

II
In Dobra Sol, only two moments are distinguished by their spatial sequence (which we can understand as an intensive journey from light to shadow or darkness, in which light is reborn in the form of a bird or hands, and we return, again, to the sun), because we also produce a fold in ourselves, in our thinking. Light – of which the sun is the primary source – always unfolds into shadow. The artists’ most recent pieces work on this constant duplicity between light and shadow in the continuity of their work on image-movement and image-time. Both movement and time are measured, in their works, by this indiscernible unity of light and shadow.In the shadows, we perceive forms that awaken our memory, which is another form of time that the artists have worked on. And they rarely work with symbology. This is generally replaced by the use of geometry and its respective abstract language (although in these times, the desire for peace is an inseparable expression of what binds us to life). In this case, the fold describes (as in the Baroque model of concept) complex geometric relationships, which find in the flight of the white doves some of the possible compositions raised, in turn, to infinity (which is characteristic of the fold, as well) by the reflection in the mirrors. The relationship between ethereal beings and doves follows the principle of compossibility contained in the fold, in which the spark of life runs through all matter and – like seeds, spores and pollen in the wind – creates distinct worlds, where animal, vegetal and human unfold in subtle metamorphoses (of which the hands are indications, or even, traits or gestures). In these, it will be possible (as the title of the film Palomacia also reveals) to transform empathy (especially that which arises from inter-species encounters) into real communities.
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[PT]
II
Em Dobra Sol, só se distinguem dois momentos pela sua sequência espacial (que poderemos compreender como um percurso intensivo desde a luz até à sombra ou escuridão, na qual a luz renasce sob a forma de ave ou de mãos, e nós regressamos, outra vez, ao sol), porquanto efectuamos, também em nós, no nosso pensamento, uma dobra. A luz – de que o sol é fonte primeira – desdobra-se sempre em sombra. As obras mais recentes dos artistas trabalham esta duplicidade constante entre luz e sombra na continuidade do seu trabalho sobre imagem-movimento e imagem-tempo. Tanto o movimento como o tempo são medidos, nas suas obras, por essa unidade indiscernível de luz-sombra. Nas sombras, percebemos formas que acordam a nossa memória, que é outra forma de tempo sobre a qual os artistas têm trabalhado. E raras vezes trabalham com simbologia. Esta é, geralmente, substituída pela utilização da geometria e da sua respectiva linguagem abstracta (ainda que nestes tempos, o desejo de paz seja expressão inseparável do que nos prende à vida). Neste caso, a dobra descreve (como no modelo barroco do conceito) relações geométricas complexas, que encontram no voo das pombas brancas algumas das composições possíveis, por sua vez, elevadas ao infinito (que é próprio da dobra, também) pela reflexão nos espelhos. A relação entre os seres etéreos e as pombas segue o princípio da compossibilidade que a dobra contém, na qual a centelha da vida percorre todas as matérias e – como as sementes, os esporos e o pólen no vento – cria mundos distintos, onde animal, vegetal e humano se desdobram em subtis metamorfoses (de que as mãos são indícios, ou mesmo, traços ou gestos). Nestes, será possível (como o título do filme Palomacia revela ainda) transformar a empatia (sobretudo a que decorre dos encontros inter-espécies) em comunidades reais


III
Sun fold
double shadow
In the flower fold
color unfolds.
White dove
in the mirror,
time bends
in the movement
it unfolds.
On the wings,
two hands
or half moons
And a sun.
Sun folds
in me
After the wind
A flower I will be
Susana Ventura for Dobra Sol, by Mariana Caló and Francisco Queimadela
April 2022
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[PT]
III
Dobra sol
sombra redobra
Na flor dobra
A cor desdobra.
Branca pomba
no espelho,
o tempo dobra
no movimento
desdobra.
Nas asas,
duas mãos
ou meias-luas
E um sol.
Dobra sol
em mim.
Flor serei
Depois de vento.
Susana Ventura para Dobra Sol, de Mariana Caló e Francisco Queimadela
Abril 2022
